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LEIO, LOGO SOU

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O filósofo francês René Descartes, autor do famoso penso, logo existo, tem todo meu respeito. Afinal, uma inteligência capaz de formular o método científico não é para qualquer um. Mas será que eu só existo porque penso, mesmo? Por muito tempo achei que sim. Pelo menos até ler o livro A Literatura como Remédio – Os Clássicos e a Saúde da Alma, do professor e pesquisador Dante Gallian, há alguns anos. Nele, o autor apresenta o Laboratório de Leitura, vivência de humanização pelos livros por ele criada em 2003 e que acaba de ser implementada na AFESU com o nome de Projeto Alcance.

Ao contrário dos clubes do livro, o LabLei, como é conhecido, é uma experiência de leitura e releitura compartilhada, em grupo, que se propõe a debater temas existenciais suscitados, sobretudo, nos clássicos da literatura universal. Na prática, é falar sobre amor, amizade e confiança, por exemplo, em vez de especular se Capitu traiu ou não Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Mas como os livros nos fazem chegar nessas reflexões filosóficas? Simples: enquanto expressão artística, a literatura desperta nossos afetos e sentimentos, faz com que pensemos sobre as situações com as quais nos deparamos nas páginas lidas e, por que não, até tenhamos vontade de ser diferentes ou de agir de modo diferente – talvez, como são ou agem as personagens dos livros que lemos. Ou você nunca ouviu uma criança ou jovem dizer que queria ser como alguma dessas figuras da ficção?

Quando pensamos na importância da literatura – ou da leitura, mais especificamente – para crianças e jovens, aliás, geralmente nos atemos apenas ao utilitarismo da prática. Por óbvio, é desnecessário relembrar que, entre outros benefícios, a leitura aprimora a escrita, fomenta a criatividade e a interpretação e estimula o senso crítico. Falamos, neste caso, da literatura como meio de uma educação mais técnica, algorítmica. Mas sendo a vida humana “um amplo repertório de variedade de tons”, como escreveu o filósofo espanhol Julián Marías no livro A Educação Sentimental, e nada algorítmica, como conhecer esse espectro tão amplo da existência sem nos limitarmos somente às relações reais, concretas? O próprio Marías nos mostra o caminho: por meio da representação imaginativa da vida humana, que tem na ficção – e, em especial, nas narrativas literárias –, o máximo instrumento de tal representação.

Segundo o pensador espanhol, a literatura tem função primordial no âmbito da vida pessoal. Escreve ele que “A maior parte das relações entre as pessoas são vividas imaginativamente, compreendem-se sem que as tenham experimentado; são elas que expandem incrivelmente a vida, além de seus conteúdos ‘reais’, forçosamente limitados. Essas vivências virtuais são o ensaio da vida complexa, rica, civilizada, e sobretudo o cultivo da intimidade”. Por ter tais características, para além do utilitarismo tecnicista ainda predominante no ensino da literatura nas escolas, prossegue Marías dizendo que “Desde muito cedo, desde a primeira juventude, a literatura permite uma série imensa de explorações, de antecipações do que poderá ser real ou não acontecer nunca, de transmigração a outras formas de vida, às vezes a outras épocas, da que se pode tomar uma posse imaginária.”

Ora, se a literatura têm mesmo esse potencial, será então que eu só sou uma pessoa, um ser humano que existe e ocupa lugar no espaço, porque penso, como definiu Descartes? Hoje, estou convencido que não. A literatura faz com que eu me conheça melhor e mais profundamente, amplia minha existência e me humaniza porque me mostra o quão múltipla é a vida – e são as pessoas – por meio das personagens e situações que descubro nos livros. Por isso, creio que eu sou, também (e não apenas, registre-se), porque eu leio. Ou, em outras palavras, que eu leio, logo existo.

Longe de mim, claro, pretender invalidar o pensamento cartesiano. Só penso – com o perdão pela repetição – que pensar, apenas, não basta; eu preciso do outro para me conhecer e, por consequência, para existir, de fato. Preciso descobrir o outro para descobrir a mim mesmo. E desconheço forma mais adequada – e prazerosa – de conhecimento dos tipos humanos, em toda sua multiplicidade quase infinita, que a proporcionada pela literatura, tal qual também creem Julián Marías, Dante Gallian e tantos outros pensadores. Em comum, acreditamos que a literatura nos revela o humano e a vida – e é por isso, também, que experimentá-la sob essa perspectiva não deixa de ser uma atividade humanística e de fomento à humanização, um caminho muito menos (ou nada) tecnicista, ao contrário daquele que ainda predomina no sistema de ensino brasileiro. Como bem define Marías, a narrativa literária de ficção é um caminho para a educação sentimental. E esta, por sua vez, é “uma das dimensões decisivas da vida humana”, “um dos núcleos ao redor dos quais a vida se organiza, precisamente em suas camadas mais profundas, onde estão as raízes de quase todas as outras coisas.”

Se toda essa ideia ainda não lhe parece muito clara, peço licença para compartilhar um último pensamento, de autoria do professor Dante Gallian, que complementa e corrobora a ideia de Julián Marías – e a minha, que, respeitosamente, ousa contestar a de Descartes. “Ao oferecer um conhecimento diferente do conhecimento convencional ou científico, ela [a literatura] possibilita compreender os comportamentos e motivações humanas de uma forma mais ampla e profunda, que vai além da visão algorítmica e que incorpora a emoção, a empatia e a intuição.”

Pois é, ilustre René! Eu existo porque penso. Mas estou convencido que existo, também, porque sinto, emociono-me, intuo e me afeto. E sinto, emociono-me, intuo e afeto-me por que e quando leio. Pois, se não lesse, talvez não tivesse o quê e de quem pensar. Talvez sequer existisse.